Como transformar a gestão de dados de investigação de obrigação burocrática em ferramenta estratégica?

De que forma a formação inicial pode garantir que futuras gerações de investigadores adotem estas práticas naturalmente?

Que mecanismos podem reforçar o reconhecimento e a integridade na reutilização de dados em acesso aberto?

DESCRIÇÃO

A gestão de dados de investigação e a sua abertura à comunidade científica e a outras comunidades interessadas tem vindo a ganhar crescente relevância e era uma temática já conhecida, nomeadamente através da experiência de participação em projetos Twinning.

Contudo, o marco decisivo neste processo ocorreu com a aprovação de um projeto  na Universidade de Aveiro centrado na análise epigenética e que envolve dados de sequenciação, tradicionalmente depositados em plataformas internacionais amplamente utilizadas. Estes dados são frequentemente reutilizados por diversos investigadores, permitindo novas abordagens a problemas já estudados ou a questões emergentes, reforçando o valor da partilha e da reutilização da informação científica.

O projeto EPIBOOST – BOOSting excellence in environmental EPIgenetics está enquadrado no Programa Horizonte Europa que tornou a prática de acesso abeto aos dados obrigatória. Este enquadramento institucional trouxe novos desafios formais, exigindo maior rigor na implementação das boas práticas de gestão de dados e no cumprimento das obrigações estabelecidas nos grant agreements.

O processo coincidiu, igualmente, com a entrada em funcionamento do repositório institucional da Universidade de Aveiro, que não estava inicialmente previsto nos planos de gestão de dados, mas que acabou por ser integrado. Esta integração representou simultaneamente um desafio e uma oportunidade: permitiu alinhar práticas institucionais com as exigências europeias e criar condições para aprendizagem conjunta entre investigadores e equipas técnicas, num contexto em que a linguagem e a estruturação dos planos de gestão de dados ainda correspondiam obstáculos, no sentido em que os investigadores estavam pouco familiarizados com estes novos requisitos.

A decisão de privilegiar o repositório institucional reforçou a aposta na capacitação, objetivo central dos projetos Twinning. Estes projetos não se limitam ao desenvolvimento científico, mas promovem igualmente competências transversais, incluindo a gestão da ciência e dos dados de investigação. 

A experiência de implementação das práticas de gestão de dados de investigação no contexto do Horizonte Europa revelou-se exigente, mas também profundamente enriquecedora. Num cenário em que os fluxos institucionais ainda não estavam plenamente definidos, os investigadores pouco treinados e o apoio especializado limitado, o processo constituiu uma oportunidade de aprendizagem coletiva. Apesar das dificuldades iniciais e da perceção de que se tratava de mais uma exigência burocrática, a prática demonstrou o seu valor e contribuiu para a criação de uma cultura mais sólida e eficiente de gestão de dados.

TRÊS LIÇÕES APRENDIDAS

A prática desmistifica a perceção burocrática

A gestão de dados de investigação só se torna clara e compreensível quando é efetivamente praticada. O contacto direto com os requisitos e procedimentos permitiu ultrapassar a ideia inicial de que se tratava apenas de uma obrigação administrativa sem benefícios. A experiência mostrou que, ao experimentar e aplicar, é possível reconhecer o potencial e as vantagens da gestão estruturada de dados, transformando-a de um fardo numa ferramenta útil.

Fluxos de registo estruturados aumentam a eficiência

A ausência de fluxos claros de registo e organização de dados gera perdas de tempo e descontinuidade nos projetos, sobretudo quando há rotatividade de investigadores. A implementação de processos formais, como a preparação de dossiês para depósito em acesso aberto, revelou-se uma estratégia eficaz para monitorizar o progresso da investigação e assegurar continuidade. Estes fluxos não apenas reduzem falhas, como também tornam a própria investigação mais eficiente e transparente.

Capacitação gera cultura e sustentabilidade

A obrigatoriedade de adotar boas práticas de gestão de dados impulsionou a formação da equipa e estimulou a criação de hábitos que beneficiarão as gerações futuras de investigadores. O treino e a adaptação inicial, embora exigentes, abriram caminho para que os novos investigadores encarem estas práticas como parte natural do processo científico. Assim, a experiência não só fortaleceu a equipa atual, como contribuiu para institucionalizar uma cultura de gestão de dados que assegura maior eficiência e sustentabilidade da investigação.

TRÊS DESAFIOS FUTUROS

Reforço do apoio institucional especializado

Um dos principais obstáculos prende-se com a ausência de equipas dedicadas de data stewards capazes de apoiar coordenadores e gestores de projetos, sobretudo em consórcios internacionais de grande dimensão. A inexistência deste suporte técnico coloca sobre os investigadores responsabilidades para as quais não estão plenamente preparados, como a definição de vocabulários ou a harmonização de práticas entre parceiros. O futuro exige que as instituições invistam em estruturas estáveis de apoio especializado, garantindo consistência e qualidade na gestão de dados.

Integração da formação em currículos académicos

A gestão de dados de investigação deve ser incorporada desde cedo nos percursos formativos, começando na licenciatura e aprofundando-se no mestrado e doutoramento. A ausência desta preparação inicial faz com que os investigadores encarem estas práticas como exigências adicionais e burocráticas. Ao contrário, se forem treinados desde o início, adotarão naturalmente estas metodologias como parte integrante da investigação, tornando os processos mais eficientes e sustentáveis. Este desafio implica uma mudança curricular e pedagógica significativa.

Reconhecimento e proteção da autoria dos dados

Apesar das vantagens do acesso aberto, subsiste um conflito entre o esforço de quem gera dados e a reutilização por terceiros sem o devido reconhecimento. A falta de mecanismos eficazes para garantir citações e rastrear reutilizações fragiliza a confiança dos investigadores e cria barreiras psicológicas à abertura. O futuro passa por desenvolver ferramentas e práticas que assegurem integridade e reconhecimento, promovendo a cultura de que um dataset tem o mesmo valor e estatuto de uma publicação científica.

Estes três desafios — apoio institucional especializado, formação académica estruturada e reconhecimento da autoria dos dados — representam pontos críticos para a consolidação de uma cultura de gestão de dados robusta e sustentável. Enfrentá-los será determinante para que as instituições e os investigadores possam não apenas cumprir requisitos formais, mas também transformar a gestão de dados num verdadeiro motor de eficiência, colaboração e inovação científica.

CINCO QUESTÕES SOBRE GDI

Como define, implementa e avalia as práticas de gestão de dados de investigação?

A implementação de boas práticas na gestão de dados de investigação exige uma abordagem estruturada e integrada, capaz de responder às exigências formais dos financiadores e, ao mesmo tempo, de promover eficiência e qualidade nos processos científicos.

Um primeiro passo fundamental consiste na definição de fluxos claros, através da criação de dossiês e templates específicos para o depósito de dados. Esta prática assegura uniformidade e continuidade, permitindo que diferentes investigadores ou equipas possam dar seguimento ao trabalho sem perda de informação ou inconsistência nos registos.

Complementarmente, a formação prática (hands-on) revela-se essencial. Ao utilizar os próprios dados dos investigadores em exercícios de depósito e gestão, o processo torna-se mais concreto e aplicável, facilitando a aprendizagem e a apropriação das metodologias. Esta abordagem prática contribui para desmistificar a perceção de burocracia e reforça a utilidade da gestão de dados como ferramenta de apoio à investigação.

Outro elemento crítico é a integração institucional, que passa pela implementação de repositórios institucionais e pelo alinhamento com os requisitos formais dos financiadores, como os estabelecidos no Horizonte Europa. Esta integração garante não apenas conformidade legal e contratual, mas também reforça a credibilidade da instituição e a sua capacidade de participar em projetos internacionais de grande dimensão.

Por fim, a avaliação contínua desempenha um papel central na consolidação destas práticas. A monitorização da eficácia deve ser realizada através da análise da capacidade de reutilização dos dados, da adesão das equipas e da redução de falhas nos processos de investigação. Este acompanhamento permite identificar pontos de melhoria, ajustar estratégias e assegurar que a gestão de dados evolui em consonância com as necessidades da comunidade científica e com as exigências regulatórias.

Quais os principais benefícios dessas práticas?

A adoção de práticas estruturadas de gestão de dados de investigação tem demonstrado benefícios claros tanto para os investigadores como para as instituições.

Um dos aspetos mais relevantes é a desmistificação do processo. Ao serem aplicadas de forma sistemática, estas práticas deixam de ser percecionadas como meros requisitos burocráticos e passam a ser entendidas como ferramentas úteis, capazes de apoiar diretamente a investigação. Esta mudança de perceção é essencial para promover a adesão e para consolidar uma cultura de dados mais madura e eficiente.

Outro benefício evidente é a eficiência. A existência de registos claros e fluxos definidos reduz significativamente as perdas de tempo associadas à rotatividade de investigadores e à ausência de documentação estruturada. Com dados organizados e acessíveis, torna-se possível assegurar continuidade nos projetos, evitando duplicação de esforços e facilitando a interpretação e prosseguimento do trabalho por diferentes membros da equipa.

A capacitação constitui igualmente um resultado central. A implementação destas práticas promove o desenvolvimento de competências transversais em investigadores e técnicos, fortalecendo a cultura institucional e criando condições para que futuras gerações de cientistas integrem naturalmente a gestão de dados nos seus processos de trabalho. Este investimento em formação e prática contribui para a sustentabilidade e para a qualidade da investigação a longo prazo.

Por fim, destaca-se a conformidade com as exigências legais e contratuais dos financiadores. O cumprimento rigoroso destas normas não só evita riscos de incumprimento, como reforça a credibilidade das instituições e a sua capacidade de participar em projetos internacionais competitivos. A gestão de dados, neste sentido, deixa de ser apenas uma obrigação formal e passa a representar uma vantagem estratégica.

Em que medida a gestão de dados de investigação contribui para a otimização do processo de investigação?

O impacto da gestão estruturada de dados na otimização do processo de investigação é significativo e multifacetado, refletindo-se diretamente na eficiência e na qualidade dos resultados científicos.

Em primeiro lugar, destaca-se a continuidade. A existência de fluxos de registo bem definidos permite que diferentes membros da equipa avancem sem interrupções, mesmo em contextos de rotatividade ou substituição de investigadores. Esta prática assegura que o conhecimento acumulado não se perde e que o trabalho pode prosseguir de forma consistente e integrada.

A monitorização constitui outro benefício central. Dossiês e planos de gestão de dados funcionam como ferramentas de acompanhamento do progresso científico, permitindo avaliar etapas concluídas, identificar lacunas e garantir que os objetivos do projeto são cumpridos. Esta capacidade de acompanhamento sistemático fortalece a transparência e facilita a tomada de decisões estratégicas.

No que respeita à qualidade, a organização e acessibilidade dos dados aumentam a fiabilidade dos resultados e abrem espaço para novas abordagens investigativas. Dados bem estruturados não apenas reduzem erros e inconsistências, como também potenciam a reutilização e a exploração de hipóteses adicionais, ampliando o impacto da investigação.

Por fim, a agilidade é um efeito direto da formação adequada dos investigadores. Quando estes dominam as práticas de gestão de dados, conseguem integrá-las naturalmente no seu trabalho, sem atrasos adicionais ou perceção de burocracia. A gestão de dados torna-se, assim, parte integrante do processo científico, contribuindo para maior rapidez e eficiência na produção de conhecimento.

Em conjunto, estes elementos demonstram que a gestão de dados não é apenas um requisito formal, mas um fator determinante para a otimização da investigação, assegurando continuidade, monitorização rigorosa, qualidade acrescida e maior agilidade na execução dos projetos.

Que vantagens e condicionantes aponta na partilha de dados de investigação?

A gestão de dados de investigação apresenta um conjunto de vantagens que reforçam a qualidade e a sustentabilidade da ciência, mas também enfrenta condicionantes que exigem atenção e investimento estratégico por parte das instituições.

Entre as principais vantagens, destaca-se a maior eficiência e transparência nos processos científicos. A adoção de fluxos claros e práticas de registo estruturado permite reduzir falhas, assegurar continuidade e tornar os resultados mais fiáveis e acessíveis. Paralelamente, a implementação destas práticas contribui para a formação de novas gerações de investigadores, que desde cedo se adaptam às exigências da gestão de dados e passam a encarar estas metodologias como parte natural da investigação. Este processo formativo garante que, no futuro, a cultura de dados estará plenamente integrada nas rotinas científicas.

Outro benefício relevante é o reforço da credibilidade institucional e da competitividade em projetos internacionais. Instituições que demonstram capacidade de gerir dados de forma eficiente e conforme às exigências dos financiadores posicionam-se melhor para liderar ou integrar consórcios de grande dimensão, aumentando a sua visibilidade e relevância no panorama científico global.

Contudo, estas vantagens são acompanhadas por condicionantes que não podem ser ignorados. A falta de recursos humanos especializados, nomeadamente data stewards, limita a capacidade de apoio técnico e coloca sobre os investigadores responsabilidades adicionais para as quais nem sempre estão preparados. A isto somam-se os custos elevados de formação e a resistência inicial dos investigadores, que muitas vezes percecionam a gestão de dados como uma exigência burocrática sem benefícios imediatos.

Existe ainda um conflito psicológico e cultural em torno da abertura e reutilização dos dados sem reconhecimento adequado. Muitos investigadores sentem que o esforço investido na produção de dados não é devidamente valorizado quando estes são reutilizados sem citação, o que gera barreiras à plena adesão ao acesso aberto.

 Finalmente, a necessidade de políticas institucionais claras e obrigatórias surge como um fator crítico: sem diretrizes firmes e consistentes, a adesão tende a ser desigual e dependente da motivação individual, comprometendo a eficácia das práticas.

Em síntese, a gestão de dados de investigação oferece ganhos significativos em eficiência, formação e credibilidade, mas só poderá atingir o seu pleno potencial se forem enfrentados os desafios relacionados com recursos humanos, formação, cultura científica e políticas institucionais.

De que forma os diferentes atores envolvidos no processo de investigação estão comprometidos com a gestão de dados de investigação?

O papel dos diferentes atores na gestão de dados de investigação é determinante para assegurar a eficácia, a sustentabilidade e a credibilidade das práticas adotadas. Cada interveniente contribui de forma complementar para a criação de uma cultura sólida de dados, capaz de responder às exigências científicas e institucionais.

As instituições têm a responsabilidade de garantir recursos humanos dedicados, definir perfis funcionais específicos e investir em programas de formação contínua. Além disso, devem criar políticas claras e obrigatórias que assegurem a adesão dos investigadores e promovam a integração da gestão de dados como parte essencial da atividade científica.

Os investigadores desempenham um papel central ao adotar práticas de gestão desde o início das suas carreiras, participando em formações e contribuindo para a consolidação da cultura de dados. A sua adesão e envolvimento são fundamentais para que estas práticas deixem de ser percecionadas como burocráticas e passem a ser encaradas como ferramentas de apoio à investigação.

Os data stewards assumem uma função técnica especializada, apoiando os projetos na definição de vocabulários, na harmonização de procedimentos e na garantia da qualidade dos planos de gestão. A sua intervenção é essencial para assegurar consistência e rigor, sobretudo em consórcios internacionais de grande dimensão.

Os financiadores têm igualmente um papel estratégico, ao definir requisitos claros e promover a cultura de dados como parte integrante da investigação. Ao estabelecer normas e critérios de avaliação, contribuem para que a gestão de dados seja reconhecida como elemento indispensável à qualidade e à transparência científica.

Por fim, os centros de competências oferecem formação inicial e contínua, adaptada às necessidades dos investigadores e à evolução das regras de financiamento. Estes centros funcionam como espaços de apoio e capacitação, garantindo que as práticas de gestão de dados acompanham as mudanças do ecossistema científico e regulatório.

Em conjunto, estes atores formam um ecossistema interdependente, no qual cada papel é essencial para que a gestão de dados de investigação se afirme como prática consolidada, eficiente e sustentável, contribuindo para o avanço da ciência e para o reforço da credibilidade institucional.